Etnomusicologia Brasileira como Etnomusicologia Participativa:
Inquietudes em Relação às Músicas Brasileiras

Angela Lühning

Durante o “Encontro Internacional de Etnomusicologia: Músicas Africanas e Indígenas em 500 Anos de Brasil”, realizado em Belo Horizonte de 23 a 28 de outubro de 2000, na Escola de Música da UFMG, acompanhamos e, sem perceber, moldamos um encontro diferente do habitual encontro científico. Poderíamos descrevê-lo como um acontecimento participativo, indo muito além de um encontro normalmente classificado como intelectual, acadêmico e/ou científico. Mas, em que ele foi diferente e inovador? Além das habituais mesas redondas com apresentações de trabalhos e palestras, ele ofereceu apresentações de filmes e apresentações musicais espontâneas, oficinas práticas ministradas pelos representantes das diversas culturas musicais presentes (com a participação de pesquisadores), especialmente índios de diversas tribos brasileiras, congueiros e os músicos do povo Bassari do Senegal: assim ouvimos, vimos e sentimos e, claro, discutimos, refletimos e aprendemos. No percurso de sua realização, surgiram muitas questões e muitas dúvidas apareceram, como também críticas e incompreensões, além de choques de expectativas diametralmente diferentes.(1)

Todos foram para ouvir e ver, sentir e aprender, embora com pré-conhecimentos, perspectivas e objetivos diferentes. Os acessos ao novo conhecimento passaram por diversas vias: ouvimos muitas músicas e sons diferentes, ao vivo, em gravações, em filmes e vídeos, ouvimos falas e explicações sobre o anteriormente ouvido e apreciamos demonstrações práticas, misturando interpretação individual, análise e prática, e assim aprendemos de formas diversas e complementares. O mais surpreendente, e procurado por muitos, foi a presença do musicalmente e culturalmente novo (para evitar o desgastado termo do “exótico”): as novas sonoridades e realidades musicais, dentro de um espaço tradicionalmente reservado para sons resultantes de concepções de música vindos d‘além-mar (do norte)... Acabou-se descobrindo até o aparentemente próximo, pelo menos geograficamente, embora até então completamente desconhecido, como o caso dos índios Maxakali de Minas Gerais, portadores de cultura e música diferentes. O índio, de fato até então desconhecido com toda a sua cultura, ao tocar e cantar, tornou-se perceptível, audível e visível, embora nem necessariamente fosse entendido pelos não índios.

Estávamos e estamos, portanto, lidando com um problema de tradução, no sentido literal, pois nos encontramos no meio de uma confrontação de línguas diferentes, expressando culturas diferentes que, pelo discurso oficial, aparentemente fariam parte de uma grande cultura nacional. Surge então a pergunta incômoda, se de fato é possível traduzir culturas e seus significados? É apenas uma ilusão? Pois cada tradução inclui as suas limitações intrínsecas e parece carregar uma certa “intraduzibilidade” inata que seria a expressão do absolutamente único e inconfundível e não comparável que reside em cada cultura.

As próprias realidades sociais parecem afirmar mais a impossibilidade do que a possibilidade de uma traduzibilidade.(2) Será que esta constatação significa que então deveríamos deixar de fazer o que estamos fazendo e buscando? Acredito que não, porque queremos, apesar de tudo isso, mais "traduzibilidade", mais compreensão entre os diversos mundos, e, no caso especifico, especialmente entre os tantos mundos musicais e sociais do Brasil. E em última instância estamos buscando outras formas de comunicação: que consigam tocar e alcançar todos os envolvidos pelas convivências que também são chamadas de pesquisas (de campo) e levam tantas vezes a textos acadêmicos estéreis que não conseguem expressar a densidade, complexidade e contraditoriedade da vida. Observamos que, muitas vezes, falam-se línguas excludentes: normalmente vemos intelectuais e acadêmicos que falam lendo os seus textos escritos (que pre-tendem retratar a vida), enquanto os outros — normalmente tidos apenas como informantes, os tantos protagonistas presentes em Belo Horizonte — falaram com e através de seus corpos que carregam toda a sua vivência e experiência, entoando, cantando, tocando e, às vezes, então "falam”, apenas tocando uma flauta de osso de veado como Kanahma, o índio waiwai.

NOTAS

(1) Ao escrever o texto, delineou-se, sempre com mais clareza, que as minhas próprias dúvidas como participante do Encontro precisavam ser expressas através de um discurso mais pessoal, sensível, questionador, tendo sido tomada de sobressalto pelos acontecimentos da própria dinâmica do Encontro. Ressalto que, desta forma, todas as colocações são individuais e subjetivas, embora em diversos momentos compartilhadas com colegas que entraram em calorosas discussões a respeito daquilo que vivenciamos em conjunto.

(2) Recomendamos o interessante texto de Peter Burke, Kultureller Austausch (2000), analisando às mais diversas fases e modalidades de contatos e trocas culturais e suas conceituações nas diversas áreas de conhecimento e durante os tempos.

BIBLIOGRAFIA

BURKE, Peter. 2000. Kultureller Austausch. Edition Suhrkamp: Frankfurt.

Brazilian Ethnomusicology as Participatory Ethnomusicology:
Anxieties Regarding Brazilian Music(s)

Angela Lühning

During the "International Ethnomusicology Symposium: 500 Years of African and Indigenous Music in Brazil," held at the School of Music at the Federal University of Minas Gerais (UFMG) in Belo Horizonte from October 23-28, 2000, we attended and, without realizing it, shaped a meeting quite different from a conventional scientific symposium. One could have described it as a participatory happening, going far beyond a symposium typically classified as intellectual, academic, or scientific. But in what way was it different and innovative? Aside from the customary roundtables with paper presentations and talks, it offered film screenings and spontaneous musical presentations, practical workshops led by representatives of the diverse musical cultures present (with participation from researchers), especially indigenous people from various Brazilian tribes, congado practitioners,(1) and musicians of the Bassari people of Senegal. Thus, attendees heard, saw, and felt, and, of course, discussed, reflected, and learned. Over the course of the event, many questions and doubts arose and criticisms and misunderstandings surfaced, as well as clashes from diametrically-opposed expectations.(2)

People attended the International Ethnomusicology Symposium to hear and see, feel and learn, although with differing sets of prior knowledge, perspectives, and objectives. Access to new knowledge filtered through various pathways: we listened to many different types of music and sounds from live performances, recordings, films, and videos; we heard talks and explanations about the previously heard material; and we enjoyed practical demonstrations, mixing individual interpretation, analysis, and practice. As a result, we learned from differing, yet complementary, formats. The most surprising, and sought after by many, was the presence of the musically and culturally new (to avoid the antiquated term "exotic")—that is, new musical sonorities and realities within a space traditionally reserved for sounds resulting from Western (northern) musical conceptions. We even ended up discovering sounds from the seemingly nearby, at least geographically, as was the case with the Maxakali people of Minas Gerais,(3) bearers of unique music and culture hitherto unknown [to us]. When the Maxakali played and sang, they became observable, audible, and visible—though not necessarily understood by non-indigenous attendees.

We were and are, therefore, dealing with a translation problem in the literal sense. We found ourselves confronted by not only different languages, but different expressive cultures that, according to the official discourse, should form part of a greater national Brazilian culture. And so there arises a troubling question: is it possible to translate cultures and their meanings at all? Or is that act of translation just an illusion? Each translation, after all, includes its intrinsic limitations and seems to carry an inherent "untranslatability"—the expression of the absolutely unique, unmistakable, and incomparable that reside in each culture.

Social realities themselves seem to reinforce the impossibility rather than the possibility of a translatability.(4) Does this finding mean that we should stop doing what we are doing and seeking what we are seeking? I don't believe so. Despite these limitations, we ought to seek out more "translatability," more understanding between diverse worlds, and in this particular case, between Brazil’s numerous musical and social worlds. Ultimately, we ought to find other forms of communication that can touch and reach everyone involved in the coexistences that we call “field” research—means of communication that do not lead to sterile academic texts unable to express the dense, complex, and contradictory nature of life. So often, we speak the languages of exclusion: intellectuals and academics at conferences normally speak by reading their written texts (intending to portray life), while those who are portrayed—the so-called informants, like the many protagonists present at the symposium in Belo Horizonte—speak with and through their bodies, which carry all of their lived experience and expertise, chanting, singing, playing, and sometimes "speaking" by simply playing a deer-bone flute like Kanahma, an indigenous waiwai.(5)

END NOTES

(1) Translator’s note: I have understood congueiros to mean practitioners of congado, also referred to as reinado (see Glaura Lucas, “Diferentes perspectivas sobre o contexto e o significado do congado mineiro,” in Músicas africanas e indígenas no Brasil, ed. Rosângela Pereira de Tugny and Ruben Caixeta de Queiroz (Belo Horizonte: Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 2008), 75). Lucas defines reinado as “an afro-Brazilian religious manifestation, in its specificity in the state of Minas Gerais, fruit of the syncretism between European Catholicism and expressions of African religiousness, especially of Bantu origin.”

(2) While writing this paper, it became increasingly clear that my own doubts as a participant of the Symposium needed to be expressed through a more personal, sensitive, inquisitive dis-course, since I was somewhat jolted by the symposium events and their very dynamics. I emphasize that, because of this, all of the statements are personal and subjective, although in various moments they were shared with colleagues who engaged in heated discussions about what we had experienced together.

(3) See Peter Burke, Kultureller Austausch (2000), for an analysis of the most varied phases and modalities of cultural contacts and exchanges, as well as conceptualizations in diverse areas of knowledge and across time.

(4) Translator’s note: Though Maxakali is the name used by Brazilians to refer to this indigenous group, they refer to themselves as Tikmũ’ũn.

(5) Translator’s note: The indigenous Waiwai are from the northern states of Amazonas, Pará, and Roraíma in Brazil and the neighboring nation of Guyana.

BIBLIOGRAPHY

BURKE, Peter. 2000. Kultureller Austausch [Cultural Exchange]. Edition Suhrkamp: Frankfurt.

O Relógio do Juízo Final

Música por Makely Ka e Rodrigo Quintela

Letra em português por Carlos Rennó

Letra em inglês por Holly Holmes

1

No mar, no rio, na lagoa, a água clara;
No céu mais limpo, o pôr mais lindo, a imagem rara;
E um ar tão puro que ninguém imaginara.
Por um período breve apenas, anormal,
Na quarentena humana inédita, afinal,
Medrou na cena urbana a vida natural.

E enquanto um índio dono de um saber profundo
Propaga ideias pra adiar o fim do mundo,
Um cara-pálida fascista em potencial,
Negativista violento do real,
Tão virulento quão pandêmico-viral,
Acelera o Relógio do Juízo Final.

2

Quando é que vamos aprender a diferença
Entre quem quer que a Terra-Gaia lhe pertença
E quem pertence a ela, é dela de nascença?
Somos do mal, o mal da Terra, não o sal.
Matamos a metade do reino animal,
Tamos rapando o vegetal e o mineral.

Se um povo dito primitivo e vagabundo
Trabalha e dança pra adiar o fim do mundo,
A tal da civilização ocidental,
“Desenvolvida, evoluída, racional”,
Queima e arrasa a própria casa, com quintal,
E apressa o Relógio do Juízo Final.

3

Quando é que vamos nos guiar por uma lógica
Mais ecológica do que mercadológica
Ou econômica, por uma bio-lógica?
Ver que não somos uma espécie central
Na biodiversidade da Terra, da qual
Nós temos sido parasitas, na real.

Enquanto um quilombola de onde é oriundo
Batuca e samba para adiar o fim do mundo,
O ruralista duma escola colonial,
O pecuarista numa escala industrial,
Monocultura e racismo ambiental,
Adiantam o Relógio do Juízo Final.

4

E como para o homem vai haver escape se
A emissão de gases atingiu um ápice,
E há previsão de que a Amazônia colapse?
E tá na gênese um “Apocalypse Now”,
Em que a temperatura média mundial
Aumenta igual ou mais que um e meio grau?

Enquanto um cientista de um labor fecundo
Emite alertas pra adiar o fim do mundo,
Negacionistas do aquecimento global,
Negociantes do petróleo, do pré-sal,
Fiéis à fé neoliberal do capital,
Aceleram o Relógio do Juízo Final.

5

Quando é que vamos acordar em quanto é vão
Um crescimento que produz destruição?
Que não há redenção sem distribuição,
Sem queda na desigualdade social
E na pegada de carbono atual,
E sem um “bem-viver” em um “novo normal”?

Enquanto uma ativista foda, que vai fundo,
Protesta e luta pra adiar o fim do mundo,
A companhia múlti, pan, transnacional,
Qual o sinistro antiministro ambiental,
Qual o grileiro, o garimpeiro ilegal,
Acelera o Relógio do Juízo Final.

6

Pensando nisso tudo, em hora tão dramática,
Temendo nossa sina trágica e errática,
Me assombra a sombra de uma mutação climática
E duma guerra cibernética fatal,
Dum uso mau da inteligência artificial
E dum conflito nuclear final, total.

Se tudo, entanto, pode estar por um segundo,
Eu canto cantos pra adiar o fim do mundo,
Pra me reconectar à mãe original,
Recontactar minha memória ancestral
E ter o júbilo de “tá” vivo afinal,
Atrasando o Relógio...
Atrasando o Relógio... do Juízo Final

Countdown to the Ultimate Hour

Music by Makely Ka and Rodrigo Quintela

Portuguese Lyrics by Carlos Rennó

English Lyrics by Holly Holmes

1

In every river, lake and sea, the clearest water;
The bluest skies, the postcard sunsets - nothing rarer;
And air so pure we breathe it in with quiet wonder
For just one brief, abnormal moment, unforeseen,
An unexpected pause, a human quarantine,
And nature flourished all across the urban scene.

Meanwhile an Indian chieftain cultivates the old ways,
Restoring wisdom to delay our fate on Doomsday.
A pale-faced fascist in the world’s largest superpower,
Alternate facts in the attempt to overpower,
As virulent as this pandemic of denial,
All to hasten the Countdown to our Ultimate Hour.

2

When will we learn to understand there is a difference
Between the man who uses land to make him billions,
And those who live off Mother Earth for their subsistence?
We lack the strength to change because of selfish fears,
We’ve killed off half our animals in fifty years,
And glaciers melting as our coastline disappears.

And in the so-called “shithole countries” that you underpay
They’re still out working to unwind the clock of Doomsday.
Civilization is a Western word for power
Supposed evolution of the “rational”
They strip the Earth of precious riches to devour
Speeding us through the Countdown to our Ultimate Hour.

3

When will we learn to make decisions that are logical
As market forces overwhelm the ecological?
Pandemic economics of the virological.
We are not all-important or exceptional
Our species broke biodiversity and how
The human race is parasitic on us all.

Meanwhile the refugees arrive from every thruway,
They raise their voices to set back the clock of Doomsday.
The landowner whose vast estate is colonial,
The cattle rancher using means industrial,
Environmental racism and White Power,
Ever faster the Countdown to our Ultimate Hour.

4

The prospect of human recovery feels cynical
When gas emissions have already reached their pinnacle
And demolition of the Amazon is criminal.
“Apocalypse Now” of the twenty-first century
In which the global average temperature cannot reach
Above the limit of just one point five degrees.

Meanwhile a scientist is synthesizing insights,
Emiting warnings we’re at one minute to midnight.
When global warming is expensive? Denial!
Petroleum is cancerous, so what, just drill!
Disciples of the ultra-neoliberal,
Speeding us through the Countdown to our Ultimate Hour.

5

How long before we realize our vanity?
Unfettered growth despite our mediocrity,
The rate of poverty shows our perversity.
Without disrupting social inequality
Our carbon footprint swells in its absurdity
And no well-being in this “new normality.”

Meanwhile an activist who closes down the freeway,
Radical protest to unwind the clock of Doomsday.
A corporation multi-, pan-, trans-national
That lobbies an environmental senator
Who bribes the illegal land grabbers running wild
All to hasten the Countdown to our Ultimate Hour.

6

In this dramatic moment of profound disruption
To mourn the needless deaths from this viral contagion,
I’m haunted by the specter of fatal mutations
A worldwide genocide from willful ignorance
An evil use for artificial intelligence
And cyberwarfare with a nuclear consequence.

So if, indeed, we’re only here to live for today,
I’m singing anthems to set back the clock of Doomsday.
To reconnect with Mother Earth, a sacred honor,
To get acquainted with my own ancestral power,
To feel the jubilance of living, after all,
Turning backward the Countdown...
Turning backward the Countdown... to our Ultimate Hour.